Jurisdição consuetudinária: os Tribunais de Águas e a democratização da arbitragem

os Tribunais de Águas e a democratização da arbitragem

É meio dia de uma quinta-feira. Os sinos da catedral dobram, anunciando o Angelus. Mas na Catedral de Valência, o seu dobrar é mais que um lembrete aos católicos para que rezem suas preces diárias: ele é também o início do expediente forense. Na Porta dos Apóstolos da Catedral, oito camponeses se sentam, todos vestidos de preto. Um outro senhor de preto, o alguacil, de pé e segurando uma alabarda, lê os processos em pauta para o dia. Esse cenário se repete pontualmente quase toda semana desde a Idade Média, e não existe nenhuma lei atribuindo competência a essa corte — cujas decisões, no entanto, raramente são descumpridas. Estamos falando do Tribunal das Águas de Valência, uma das mais antigas instituições jurisdicionais do mundo ainda em funcionamento.

Declarado patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Unesco, o tribunal é um dos exemplos mais primorosos de governo autogestionário das comunidades locais e um exemplo à frente de seu tempo de justiça multiportas, conforme a expressão tão acolhida pela doutrina brasileira do professor Frank Sander: nele, os próprios regantes, usuários dos cursos d’água da região, elegem síndicos (também agricultores) para cada uma das comunidades banhadas pelas acéquias, canais de irrigação que já abasteciam a agricultura local desde a Reconquista. Os valencianos mais orgulhosos de sua tradição, como é de praxe no Mediterrâneo, traçam a origem de suas instituições aos tempos dos romanos.

Os julgamentos são orais e céleres, conduzidos integralmente em valenciano, sendo todos os casos resolvidos em questão de horas. As sentenças? Irrecorríveis. O leitor mais atento talvez tenha reparado no começo deste artigo que o número de juízes da corte é oito, mas não há problemas com empates: quando o litígio é apresentado pelas partes, o síndico representante da sua comunidade se abstém, para garantir a imparcialidade da votação.

A gestão comunitária das águas pelos valencianos é, além de interessantíssima construção jurídica, um fenômeno econômico digno de nota: há séculos, eles já intuíram o ponto central da “tragédia dos comuns”, tão cara aos economistas: quando os recursos são usados por todos indiscriminadamente, cada um buscando maximizar seus lucros, o resultado é a privatização dos ganhos a curto prazo e a socialização das perdas a longo prazo, inclusive para os que ganharam no começo. Entretanto, a solução adotada não foi exatamente nenhuma das duas comumente sugeridas na teoria econômica, a privatização e a estatização: ao revés, construiu-se um modelo de autogestão pelos camponeses, que eficazmente controlam o uso individual das águas sem eliminar a propriedade privada dos regantes.

Traduzindo para a linguagem jurídica brasileira, o método valenciano nada mais é do que uma arbitragem consagrada pelo costume. As notas essenciais da arbitragem estão todas presentes: solução heterônoma do conflito por um terceiro não investido de função estatal ao qual as partes livremente se submetem; bem como as do costume: comportamento social reiterado cujos praticantes entendem ser vinculante. Ao fim e ao cabo, nada obriga os regantes a levarem seus litígios à porta da catedral: eles optam por fazê-lo.

Como sempre foi senso comum no direito brasileiro, a jurisdição “é uma atividade de monopólio do Estado, que dirime os conflitos entre os particulares e substitui a vontade das partes pela vontade da lei”, na clássica lição de Chiovenda — conceito já considerado démodé pela doutrina e jurisprudência mais recentes, que reconhecem a arbitragem como forma de jurisdição e a prestigiam como fator de pacificação social.

De fato, no cerne de tal discussão, mais que os meios de pôr a engrenagem social a girar, põe-se questão de se experiências de direitos extra-estatais não estariam em desacordo com a tradição jurídica brasileira, constituída, desde sua gênese, à luz do sistema de civil law romano-gêrmanico. Permita-nos o leitor fazer uma breve digressão para analisar essa questão sob um ângulo um pouco mais teórico.

Nesse sentido, diferentemente do que postula a teoria monista do Estado, Miguel Reale — em sua insigne “Teoria do Direito e do Estado” — nos propõe o seguinte questionamento: “se o Estado fosse o criador do Direito seria possível reduzir o lícito ao jurídico, mas que é o Estado senão uma instituição entre muitas instituições, um ordenamento entre muitos ordenamentos?”.

Tal concepção pluralista do direito encontra uma inquestionável base na realidade. O imortal brocardo latino ubi societas, ibi jus apenas reflete a veracidade de tal cosmovisão, que vislumbra formas variadas de manifestação do fenômeno jurídico tendo em vista os mais diversos momentos e setores da vida social.

Enfim, malgrado todas as suas vantagens, a arbitragem continua inacessível para a vastíssima maioria da população brasileira: os altos custos envolvidos na manutenção de uma grande câmara arbitral fazem com que este meio de solução de conflitos seja factível somente para grandes empresas, em contratos normalmente transnacionais.

A experiência do Tribunal das Águas, no entanto, bem como de outros corpos semelhantes na Espanha e alhures, mostra que a arbitragem não é somente para mega contratos: ela pode ser uma grande facilitadora na vida de litigantes de todos os extratos sociais. É certo que não se cria uma instituição consuetudinária do dia para a noite, e não se pode “copiar e colar” modelos do direito comparado sem nenhuma consideração pela realidade concreta do Brasil, mas não é inimaginável, por exemplo, que os boiadeiros do interior do Nordeste resolvam suas disputas mais simples entre si, ou que pequenos empresários levem seus litígios a uma câmara de comerciantes.

Foi aprendendo dessa experiência que o Código Rural do Paraguai tornou o “juiz de águas” uma figura obrigatória para todo curso d’água utilizado por mais de três pessoas, criando uma espécie de “arbitragem de curso forçado”:

“Art. 391: Siempre que más de tres personas aprovecharen el agua de un mismo cauce, elegirán los regantes, por mayoría de votos, un juez de aguas, quien decidirá ex aquo et bono (sic) todas las cuestiones que se susciten entre aquellos, con apelación ante el juez de paz.”

Poder-se-ia objetar que a imposição legal de um árbitro derrotaria o sentido principal de um tribunal aos moldes do valenciano, que é a formação de uma identidade comunitária capaz de resolver por si mesma os litígios de natureza mais simples, sem a necessidade de intervenção pelo direito positivo centralista. Essa objeção não estaria de todo errada: entretanto, ao se considerar o quão profundamente sedimentada é a cultura da onipresença da lei nos países de tradição continental de civil law — e, como já dito, não se cria um costume da noite para o dia —, o caminho adotado pelo dispositivo não parece de todo absurdo.

O constituinte de 88, ao prever a criação da Justiça de Paz no artigo 98, inciso II, foi bastante tímido ao enumerar suas atribuições, deixando a resolução dos casos simples a que nos referimos geralmente aos Juizados Especiais. Um caminho interessante para a construção de uma cultura de arbitragem seria, talvez, introduzir novas atribuições especializadas para a justiça de paz, no esteio do juez de águas do Código Rural Paraguaio.

Ao fim e ao cabo, a finalidade de toda jurisdição, estatal ou não, continua sendo, sempre, dirimir conflitos de interesses. Se é possível construir uma forma de dirimi-los com menos custos para o erário e favorecendo a subsidiariedade e a coesão local, por que não discuti-la?

 é estudante de graduação na Universidade Federal da Paraíba.
é aluno de graduação na Universidade Federal da Paraíba.
Fonte: Conjur