Usucapião da fração do tempo na multipropriedade imobiliária

Usucapião da fração do tempo na multipropriedade imobiliária

Sumário:

1- Panorama Legislativo Espaço-Temporal e Mosaico de Nomenclaturas;

2- Conceito e Natureza da Multipropriedade Imobiliária no Brasil;

3- Contornos Gerais da Usucapião Imobiliária, Posse e a Função Social e Econômica da Propriedade;

4- Natureza Jurídica da Multipropriedade frente a Institutos Possessórios e Desapropriadores;

5- Necessidade de Adequação do Instituto da Usucapião à Multipropriedade.

1) Panorama Legislativo Espaço-Temporal e Mosaico de Nomenclaturas

propriedade de férias compartilhadas surge nos anos 1960, na França1, diante de um cenário de intensa movimentação do mercado locativo na região dos Alpes, próximo à Suíça. Desde então, vem sendo muito comercializada por intermédio de grandes multinacionais, como a RCI, acrônimo de Resorts Condominiums International2, empresa alemã com sua primeira filial aberta em Indianapolis, nos Estados Unidos, no ano de 1974.

O conceito de compartilhamento de tempo, assim, é introduzido nos EUA, na década de 1970, sob a égide do direito do consumidor3, de modo que o comprador não obtém qualquer participação acionária no resort ou hospedaria, mas, sim, recebe o direito de usar a unidade de timeshare por um período de tempo especificado, após o qual o título se retrocede ao desenvolvedor. Constituir-se-ia, assim, um direito de acomodação temporária adquirido por uma longa duração, em residência de turismo4. Esse mecanismo seria comparável ao conceito brasileiro de direito real de propriedade resolúvel, que se submete ao cumprimento de uma condição estabelecida ou ao advento do termo convencionado, de modo a serem “também resolvidos também os direitos reais concedidos na sua pendência” (artigo 1.359 CC/02).

Timeshare Sales Law, Rules and Regulations, promulgada no estado do Alabama em 19835, caracteriza, no mesmo sentido, o Plano de Propriedade de Compartilhamento de Tempo de Férias (Vacation Time Sharing Ownership Plan ) como “qualquer acordo, plano ou dispositivo similar, seja por arrendamento em comum, venda, escritura ou por outros meios, que esteja sujeito a contrato […] para uso da unidade de compartilhamento de tempo, pelo qual o comprador recebe uma taxa indivisa de propriedade simples interesse e direito de usar acomodações ou instalações, ou ambos, por um período específico durante um determinado ano, mas não necessariamente por anos consecutivos, que se estendem por um período superior a um ano.”

De modo semelhante redige a Lei grega nº 1.652/86 sobre locação a tempo compartilhado, tratando-a como um negócio que combina elementos do contrato de locação ao de hotelaria. Essa qualificação se adapta facilmente ao direito grego, esse que proíbe que estrangeiros detenham direitos reais imobiliários em território nacional6. A americana fractional ownership, joint ownership ou, ainda, timeshare ownership, por sua vez, corresponde à propriedade de um bem factualmente indivisível, porém estruturado em condomínio quanto às faculdades de uso e gozo, sendo essas limitadas a uma quantidade de dias em períodos específicos ou reservados do ano, correspondendo ao que é tratado pelo Direito Brasileiro sob a denominação de Multipropriedade.

UK Timeshare Act of 19927 classifica o regime em análise como qualquer acomodação de morada usada ou destinada a ser usada, total ou parcialmente, para fins de lazer por uma classe de pessoas que tenham direitos de uso ou participem de acordos sob os quais possam usar esse alojamento por períodos intermitentes de curta duração.

A República Portuguesa, no ano de 1993, aprovou por meio do Decreto-Lei nº 275/938, o direito real de habitação periódica limitados a um período certo de tempo de cada ano sobre as unidades de alojamento integradas em hotéis-apartamentos, aldeamentos turísticos e apartamentos turísticos.

Nesse contexto, de reconhecimento em muitos países na Europa do timeshare como um direito de propriedade sui generis9, desponta a Diretiva 94/47/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia de 26 de Outubro de 199410, relativa à proteção dos adquirentes quanto a certos aspectos dos contratos de aquisição de um direito de utilização a tempo parcial de bens imóveis. Essa fora posteriormente atualizada pela Diretiva 2008/122/EC11, que estende seu âmbito de aplicação às férias de longa duração como resposta à evolução do setor, em decorrência do aumento da oferta de produtos e serviços relacionados ao timeshare, além de facilitar a uniformização da legislação europeia.

Assim, na Espanha, o artigo  da Lei 42/199812 reconhece o direito de aproveitamento por turno como direito real limitado sobre bens imóveis, consistindo na faculdade de desfrute exclusivo durante um período específico do ano, compreendendo tanto a estrutura da coisa quanto o seu mobiliário; e o Decreto Legislativo italiano nº 42713 do mesmo ano acrescenta ao direito de gozo de bens imóveis a tempo parcial que esse pode se dar por um período determinado ou determinável do ano, não inferior a uma semana, assim como trata o Direito Brasileiro.

Enquanto isso, no Brasil, a matéria foi primordialmente codificada de forma direta e exclusiva apenas no ano de 2018, por meio da Lei 13.777/1814.

2) Conceito e Natureza da Multipropriedade Imobiliária no Brasil

Esse instituto, recém-acrescido ao ordenamento jurídico brasileiro no rol taxativo de direitos reais, corresponde ao que em países anglófonos frequentemente é conhecido por timeshare15 ou fractional ownership, regime de propriedade fracionada estendido a bens imóveis (no Brasil, essencialmente relativo a bens imóveis) por meio do qual múltiplos são os titulares do direito real de propriedade de um bem indivisível, sobre o qual têm as faculdades inerentes àquele limitadas à fração de tempo que se titula, além de deveres nos limites dessa ficção jurídico-temporal idealizada (artigo 1.358-I CC/02). Cabe acrescentar que a época ou temporada do ano em que o uso lhe é de direito também exerce influência sobre as responsabilidades pecuniárias do proprietário frente ao imóvel, o que permitiria que frações de tempo quantitativamente correspondentes façam jus a pecúnia atributiva mais ou menos elevada.

Define-o o Código Civil Brasileiro de 2002, alterado pela Lei da Multipropriedade Imobiliária (Lei 13.777/2018):

Art. 1.358-C. Multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde à faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.

O referido surge em um contexto benéfico àquele que pretenderia, por exemplo, adquirir um imóvel para uso periódico, geralmente com fins de lazer. Passa o sujeito a desembolsar, para tanto, valores monetários menos significativos, além de, assim, reduzir-se o tempo de ociosidade dos imóveis e as despesas com sua manutenção e segurança, que passam, desde logo, a ser compartilhadas entre os condôminos.

Alguns países, como assinalado anteriormente, fazem referência ao sistema de time-sharing como sendo o direito pessoal16 que pressupõe a cessão onerosa de uso, mas por tempo específico e determinado, e cuja aquisição não implica a transmissão da propriedade, sendo o instituidor do regime de uso o único proprietário. Nesse sentido, a regulamentação competiria à Lei Geral do Turismo (Lei 11.771/2008) e ao Decreto 7.381/2010, que em seu artigo 28 o define como a “relação em que o prestador de serviço de hotelaria cede a terceiro o direito de uso de unidades habitacionais por determinados períodos de ocupação, compreendidos dentro de intervalo de tempo ajustado contratualmente”.

Como tratada pelo recém inovado Direito Brasileiro, em decorrência de sua natureza de direito real sobre bens imóveis, a fim de se consolidar uma fração de tempo em multipropriedade, faz-se necessária solenidade por meio d’escritura pública junto ao Registro de Imóveis da região (artigo 1.227 CC/02 e artigo 172 Lei 6.015/73). Ainda, vale mencionar, que a unidade temporal pode ser fixa e definida, flutuante ou, ainda, mista, diferindo, mais uma vez, do regime hoteleiro, que demanda pré-determinação do período no instrumento particular celebrado entre as partes.

Como fontes normativas do instituto em questão, prevê o Código Civil Brasileiro de 2002, no artigo 1.358-B. A, que “a multipropriedade reger-se-á pelo disposto neste Capítulo e, de forma supletiva e subsidiária, pelas demais disposições deste Código e pelas disposições das Leis nºs 4.591, de 16 de dezembro de 1964 (Lei do Condomínio), e 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor)”.

O regime de multipropriedade é caracterizado, assim, pela pluralidade de unidades periódicas vinculadas a um imóvel-base, indivisível, e o instituto subsiste ainda que todas as frações de tempo sejam tituladas por um mesmo proprietário (arts. 1.358-D e 1.358-C, parágrafo único CC/02). Nesse caso, caber-lhe-ia a opção de manter ou de extinguir a divisão ficto-temporal estabelecida. A unidade periódica na qual se exerce o direito real de propriedade e durante a qual se dispõe de posse e domínio integral do imóvel pode ser objeto de cessão e de alienação (artigo 1.358-I CC/02) e, embora se assemelhe ao instituto do condomínio edilício ou horizontal, não figura o direito de preferência entre os condôminos, salvo se esse houver sido resguardado no instrumento d’instituição ou na convenção de condomínio (art. 1.358-L caput e § 1º CC).

3) Contornos Gerais da Usucapião Imobiliária, Posse e a Função Social e Econômica da Propriedade

Sabe-se que uma das possibilidades de aquisição originária da propriedade de bem imóvel figura por meio de usucapião (prescrição aquisitiva), em uma ou mais de suas diversas modalidades:

– Especial Constitucional Urbana ou pró-moradia, prevista pela Constituição Federal Brasileira de 1888, em seu artigo 183 e incluída no Código Civil Brasileiro por meio do artigo 1.238, dos artigos  e 10º do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e do artigo 25 da Lei da regularização fundiária rural e urbana (Lei 13.465/2017); Especial Constitucional Rural ou pro labore (art. 191 CRFB/88 e art. 1.239 CC/02); Extraordinária (art. 1.238 CC/02);

– Do Cônjuge ou Companheiro (art. 1.240-A CC/02); Ordinária (art. 1.242 CC/02);

– Coletiva (art. 10º do Estatuto da Cidade – Lei 12.257/2001);

– Extrajudicial (art. 216-A da Lei dos Registros Publicos – Lei 6.015/73 e Provimento 65 CNJ).

Os requisitos gerais da posse para permitir usucapião são posse justa, inferida contrario sensu do artigo 1.200 CC/02 como aquela que não é violenta, clandestina e precária; contínua/initerrupta; de boa-fé, que tem como requisitos não ignorar vícios e não prejudicar terceiros; e com justo-título (exceto no que tange à modalidade extraordinária, hipótese em que as duas últimas premissas não são mandatórias). Rudolf Von Ihering, inaugurador da Teoria Objetiva no século XIX para a definição da posse, a enxerga à luz da situação jurídica de fato, de modo que essa dependeria, resumidamente, da manifestação d’affectio tenendi, abrangente do corpus (domínio físico) e do animus, o agir em nome próprio frente à coisa, mas sem a vontade de ser proprietário, vez que age restringido por limites legais ou convencionais, como um contrato de locação. Já seu contemporâneo Friedrich Von Savigny, no século XIX, caracteriza a posse como fato jurídico à luz da Teoria Subjetiva ou Teoria da Vontade, devendo-se fazer presente, além da detenção física da coisa, o animus domini, o agir frente a ela em nome próprio, como se dono fosse (realizar investimentos no imóvel, reformas, benfeitorias úteis, voluptuárias, de acréscimo etc.) e a vontade de sê-lo, passando a posse a constituir um degrau para aquisição da propriedade. Por isso, à luz de sua teoria, vale mencionar, o inquilino, o usufrutuário e o credor pignoratício são meramente detentores, vez que têm limitação legal para uso e disposição da coisa, e menor é o elenco dos legitimados à propositura de ação de usucapião. A Teoria Social, por sua vez, não dialoga com as demais, vez que não busca caracterizar a posse, diferindo-a da detenção, mas sim, passa a tratar dela como direito subjetivo autônomo, podendo, por conseguinte, ser levado a registro, sem necessidade de sentença judicial.

Ainda, pode ser instaurada ação de reintegração de posse e d’interdito proibitório, em esbulho ou turbação concretos ou iminentes (artigos 560 e 567 CPC/15). Como reflexo dessa teoria, a Lei 13.465/17, da Regularização Fundiária, em seu artigo 26, legitima a posse de bens privados, essa que pode ser transmitida por ato inter-vivos causa-mortis, bem como convertida em propriedade (artigo 186 CRFB/88).

Profere o Código Civil Brasieiro de 2002, em seu artigo 1.196: “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” e no artigo 1.228 caput e § 1º: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. ; § 1º – O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais […]”. Ao tratar da posse como modelo da propriedade, induz-se que possuidor é aquele que exerce um dos poderes inerentes à propriedade à luz da função social.

Ao limitar incessantemente a possibilidade de adquirir uma propriedade por meio de usucapião a 1 (uma) ação petitória por modalidade e ao reduzir os prazos para a usucapião extraordinária e ordinária relativa a bens imóveis “se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou realizado investimentos de interesse social e econômicoCódigo Civil atenta objetiva a regularização fundiária, ao passo que prestigia a função social da propriedade (arts. , inc. XXIII e 170, inc. III CRFB/88 e art. 1.228§ 1º CC/02), que determina que a propriedade urbana ou rural deverá, além de servir aos interesses do proprietário, estar em consonância com as necessidades e os interesses da coletividade e com a proteção do meio ambiente17.

A função social da propriedade, embora introduzida pela Constituição Federal Brasileira de 1988 como conceito aberto e indeterminado, tem sua caracterização orientada em se distinguindo a propriedade rural, em consonância com o art. 186 CRFB/88, da urbana, sobre a qual discorrem o artigo 182 § 2º CRFB/88 e o artigo 40 da Lei 10.257/2001, Estatuto da Cidade. Os requisitos a serem obedecidos a fim de examinar o cumprimento da função social da propriedade rural seriam aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Enquanto isso, “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”, esse último abrangido pelo Estatuto da Cidade.

Além disso, pode ser também possível relacionar, ainda que não expresso no ordenamento jurídico, a função social da propriedade à proteção da dignidade da pessoa humana (art. , inc. III CRFB/88) e ao direito fundamental à moradia (art.  CRFB/88).

O titular de fração de tempo que não comparece à propriedade durante o período para si discriminado, ou que não envia terceiros, seja por meio de locação temporária ou de cessão temporária de uso do imóvel, a fim de o preencher humanamente, estaria atentando contra a função social da propriedade, como resultado dessa reiterada omissão, podendo mesmo caracterizar renúncia ou abandono. Enquanto isso, o uso e gozo exercidos pelo terceiro durante a detenção initerrupta do imóvel na integralidade dos -sempre vacantes- períodos titulados pelo multiproprietário omisso constituiriam a posse in natura, já que, conforme prevê o artigo 1.204 CC/02, essa decorre do exercício de ao menos uma das faculdades inerentes do direito real de propriedade.

4- Natureza Jurídica da Multipropriedade e Institutos Possessórios e Desapropriadores

Vez que se trata o instituto da multipropriedade de direito real de propriedade, ulteriormente ao surgimento da Lei 13.777/18, tem-se que as unidades periódicas são suscetíveis de alienação, locação e cessão gratuita ou onerosa, conforme explicitamente disposto no artigo 1.385-I CC/02, dos direitos do multiproprietário. Ainda, cada unidade periódica detém inscrição ou matrícula imobiliária individualizada e é um fato gerador de tributo real próprio, obrigações propter rem, que acompanham a coisa, a exemplo, o IPTU, conforme disposição dos artigos 1.358-J CC/02 e 176§§ 10º,11º da Lei dos Registros Publicos (Lei 6.015/73). Desse modo, assim como ocorre frente ao condomínio edilício, não haveria solidariedade entre os multiproprietários, que seriam indiferentes a eventual penhora e expropriação da unidade periódica do inadimplente18, ainda mais em se considerando que, conforme prevê o artigo 1.358-L CC/02“a transferência do direito de multipropriedade […] não dependerá da anuência ou cientificação dos demais multiproprietários”.

O mesmo artigo acrescenta, ainda, que a transferência da quota-tempo e sua produção de efeitos perante terceiros dar-se-ão na forma da lei civil (solenidade no Registro de Imóveis, vide artigos 1.227 CC/02 e 176 Lei 6.015/73) e o artigo 1.358-T do CC/02 impõe, especificando que a renúncia translativa da unidade temporal seja realizada em favor do condomínio, de modo a dever, infere-se, na conjuntura de cessão de direitos, o antigo titular arcar com o imposto de transmissão da propriedade. A redação do artigo instiga a consideração de que é possível, também, a renúncia abdicativa, implicando a extinção dos diretos do proprietário para com sua quota-tempo sobre o imóvel. Sobre o tema, aborda Luciano de Camargo Penteado19: “A renúncia tem por efeito tornar o bem sem dono, isto é res nullius. Deste modo, perde a titularidade subjetiva, convertendo-se em bem vago que, preenchidos os pressupostos, poderá ser arrecadado. Assim como a alienação, a renúncia só produz efeitos quando levada a registro no CRI competente (1.275 CC parágrafo único).”

Analisa o ministro do Superior Tribunal de Justiça do estado de São Paulo João Otávio, que expressouainda anteriormente à codificação em lei especial e incorporação ao Código Civil Brasileiro de 2002, em voto no REsp nº 1.546.165-SP20, que “o multiproprietário, no caso de penhora do imóvel objeto de compartilhamento espaço- temporal (time-sharing), tem, nos embargos de terceiro, o instrumento judicial protetivo de sua fração ideal do bem objeto de constrição”, e que “é insubsistente a penhora sobre a integralidade do imóvel submetido ao regime de multipropriedade na hipótese em que a parte embargante é titular de fração ideal por conta de cessão de direitos em que figurou como cessionária.” Dessa maneira, corrobora que“eventual penhora deverá recair sobre o direito real de propriedade sobre a unidade periódica, ressalvados os casos de impenhorabilidade legal”. Convém apontar que jamais poderão ser penhorados os móveis que guarnecem o imóvel, pois eles estão vinculados às demais unidades periódicas de modo indivisível (vide artigo 1.358-D CC).

Cabe acrescentar que, devido à sua natureza axiomática de direito real, a fração de tempo na multipropriedade alcançaria, ainda, a proteção sumulada ao bem de família (s.486 STJ e artigos  e  da Lei nº 8.009/90), sobre a impenhorabilidade do único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente. Essa hipótese, todavia, sob o cenário projetado pela multipropriedade, seria raríssima, dependendo que o multiproprietário constituísse múltiplas multipropriedades, de modo que a soma das unidades periódicas tituladas convergisse na integralidade do ano civil. Essa hipótese, além de deveras insólita, exigiria interpretação individualizada do dispositivo que trata da impenhorabilidade do bem de família, visto que o indivíduo não seria proprietário de um único imóvel utilizado para residência, mas sim de múltiplas unidades periódicas, às quais tem acesso e detenção em períodos de tempo não congruentes

Nesse panorama, vislumbra-se a adjudicação, codificada e caracterizada por Moacyr Amaral Santos21 como “um ato executório, um ato processual de índole coativa, por meio do qual o Estado, no exercício de sua função jurisdicional, e para realização da sanção formulada no título executivo, transfere ao exequente, ou outro credor, para satisfação e extinção do seu crédito, bens do devedor”. Cândido Rangel Dinamarco a conjectura como “um dos modos pelos quais se faz a expropriação, ou seja, tanto quanto a arrematação é ela uma alienação forçada”. Consoante ao que fora analisado anteriormente (art. 1.358-S CC/02), é possível perder a propriedade de uma fração temporal por meio de adjudicação, ainda que em favor do condomínio, quando relativo a dívidas internas. Interpretando-se de modo análogo, e n’ausência de disposição em contrário, poderia também haver o ato executivo e coercitivo de expropriação em favor de terceiro, no que tange a dívidas externas ao condomínio. Desse modo, constitui-se mais uma forma de perda da propriedade imóvel.

Interessa reportar que o parágrafo único no mesmo dispositivo, que aborda o caso de a fração-tempo elegível a adjudicação em decorrência de dívidas internas ser de condomínio destinado essencialmente a negócios de locação, poderia ser analisado como mecanismo único de anticrese legal (art. 1.419 c/c 1.507 CC/02), por meio do qual a fração de tempo transmutar-se-ia coercitivamente em direito real de garantia de frutos.

Nesse sentido, consolida-se o entendimento de que a fração de tempo na multipropriedade tem natureza incontestável de direito real independente, podendo ser objeto de transmissão, renúncia, perda e, ainda, transfigurar-se em objeto real de garantia de obrigação principal, notavelmente nos casos apreciados, de adjudicação, anticrese, alienação fiduciária e de todos os demais. A multipropriedade imobiliária, assim, pode ser definida como múltiplas propriedades relacionadas a um mesmo imóvel indivisível, acrescidas de obrigações específicas discriminadas no artigo 1.358-J, notadamente a conservação do imóvel e do mobiliário que o compõe e o limite temporal no que concerne às suas faculdades. A “fração de tempo”, que corresponde a essa propriedade individualizada decorrente da multipropriedade, que é acrescida de deveres e tem suas faculdades limitadas pelo tempo, realçada sua res habilis, capacidade de ser configurada como objeto de comercialização, é digna de todas as demais formas de perda e aquisição da propriedade, dentre as quais, a usucapião.

5- Necessidade de Adequação do Instituto da Usucapião à Multipropriedade

Sabe-se que a posse, consumada em sua substância, é o primórdio para a instauração desse tipo de ação petitória e, a variar conforme a modalidade de usucapião aderida, deve se sustentar durante o período mínimo de dois anos, como ocorre no caso da usucapião de ex-cônjuge ou ex-companheiro, vide o dispositivo 1.240-A do Código Civil Brasileiro de 2002. Incorporando-se de maneira literal e inalterada o requisito da continuidade à posse frente à multipropriedade, a usucapião caberia na única hipótese de todos os multiproprietários estarem omissos e haverem abandonado o imóvel, passando o usucapindo, após dois anos de posse justa, de boa-fé e initerrupta, a ser elegível à apropriação de todas as frações de tempo. Sobrevir-lhe-ia, uma vez suas propriedades adquiridas após o devido processo legal, a opção de extinguir ou manter o regime em análise, mas desde logo podendo usar, gozar, dispor e opor seu direito de sequela (reaver de injusta posse ou detenção) sobre o imóvel em qualquer época do ano (vez que se tornaria titular de todas as quotas temporais matriculadas junto à unidade principal).

Diante desse cenário legislativo, que se manteve inalterado ainda após a recente incorporação de inovador regime imobiliário, em se adotando a interpretação literal do dispositivo, são drasticamente reduzidas ao possuidor de unidade periódica as possibilidades de consolidação da proposta original do instituto da usucapião: enaltecer a função social da propriedade. O instituto da usucapião, em todas as suas modalidades, é explícito ao impor que o período durante o qual o domínio que deve ser exercido pelo usucapindo seja initerrupto. O fato, todavia, de a legislação brasileira, que discorre extensivamente sobre a prescrição aquisitiva geradora de propriedade originária por meio da usucapião, não ter tratado diretamente de sua possiblidade frente ao contexto em análise, bem como não lhe ter sido acrescido texto legal correspondente, abriria espaço para interpretar, à luz da função social da propriedade, que o período initerrupto do exercício do domínio por parte do potencial usucapindo, adequado ao cenário peculiar delineado pela multipropriedade, materializar-se-ia na ocupação do imóvel durante a plenitude de cada uma das frações de tempo de titularidade do multiproprietário omisso.

O direito italiano explicita, no artigo 1.158 do atual Código Civil, que o período de posse, no caso, de vinte anos, seja continuado. Contudo, a doutrina italiana afirma convictamente que “a posse contínua não significa uma posse exercitada mediante uma ingerência assídua sobre o bem: é sobretudo necessária uma situação em que o possessor tem a possibilidade de expedir, quando o quiser, atos de senhoria relativamente à coisa”22. Mais além, há quem reconheça a possibilidade de moldagem direta do dispositivo do Código Civil Italiano ao universo da multipropriedade, de modo que o mesmo seria interpretado no significado de que o poder de fato sobre as coisas deve continuar por vinte anos solares, considerando-se os ciclos dos períodos titulados pelo proprietário23. Logo, se acordando os enunciados ao instituto multiproprietário, apresenta-se que, desde que ao possessor caiba exercer alguma das faculdades do direito de propriedade dentro das frações de tempo reservadas ao então proprietário, durante o período demandado para instaurar ação petitória de usucapião, configurar-se-ia legitimado para tanto.

Sabe-se, então, que as faculdades do direito real na multipropriedade são exercíveis somente dentro da moldura que cada fração de tempo delimita e que há um rol de obrigações legais concernentes a essa espécie de propriedade, listadas no artigo 1.358-J CC/02. Dentre essas regras, há-se de destacar aquelas cujo descumprimento é propício a interferir nos direitos dos demais multiproprietários, como a obrigação de “desocupar o imóvel até o dia e hora fixados no instrumento de instituição ou na convenção de condomínio em multipropriedade, sob pena de multa diária” e a de “não modificar, alterar ou substituir o mobiliário, os equipamentos e as instalações do imóvel”. Assim, além da interpretação especial conferida ao requisito temporal na usucapião da fração de tempo, far-se-ia necessário, durante a ação petitória, do levantamento do instrumento de constituição da multipropriedade ou da convenção de condomínio, documentos esses que, em consonância com o caput do referido artigo, podem abranger obrigações suplementares, a fim de que o usucapindo possa conceder seu consentimento expresso quanto às suas obrigações legais e convencionais ao se apropriar dessa espécie de propriedade.

Assim sendo, a admissibilidade da materialização da usucapião frente a propriedades de unidades periódicas se revela legalmente tangível, no entanto, experimentalmente tende a ser excepcional. Em se ilustrando, raro seria um multiproprietário de uma fração de sete dias (mínimo legal estabelecido pela Lei 13.777/18) não adimplir e não o ocupar a cada ano, especialmente em se observando a finalidade turística geralmente projetada ao se aderir ao regime multiproprietário. Para tanto, ainda, o suposto usucapindo haveria de conhecer o panorama fático e se comunicar com o administrador para se certificar na inadimplência do proprietário e satisfazer as despesas fixas e flutuantes dos períodos em que teria usufruído do bem, a fim de constituir seu direito autônomo de posse frente ao Registro de Imóveis, com base na Teoria Social da Posse, munindo-se de provas para a instituição da ação petitória de propriedade da unidade periódica. Mais difícil ainda, seria na hipótese de o titular da fração de tempo o ser frente a muitos períodos intercalados durante o ano, de modo que, para se consagrar a usucapião, o possuidor haveria de ocupar contínua e integralmente todas as frações de tempo, que, ainda mais improvavelmente, estariam à disposição.

Inversamente, a usucapião de cônjuge ou companheiro poder-se-ia revelar mais simplificada, em se sendo titular de uma semana em cada ano e em caso de abandono financeiro por parte do nubente apartado. Suscintamente, embora legalmente admissível, para se revelar exequível, há-se de expectar um cenário deveras invulgar, principalmente em se considerando o propósito majoritariamente turístico ao se submeter ao instituto.

Muito importa mencionar que o mercado imobiliário pode estar propenso a intensificar a divisão em matrículas, convertendo-se condomínios edilícios de algumas regiões em multipropriedade: a potencial redução de custos fixos e variáveis ou sazonais e a consequente facilitação de se atingir a segurança financeira constituiria uma medida prudente de evitar possíveis reflexos negativos da inflação face ao mercado imobiliário locatício. Além disso, Tribunais Superiores por todo o país têm tomado diferentes decisões quanto à questão da locação por temporada entre particulares por meio do intermédio de plataformas digitais. Conforme o entendimento do TJ-RS24, o não vínculo entre os inquilinos, a alta rotatividade de pessoas e a reforma no apartamento para a construção de novos quartos com o intuito de acomodar mais pessoas são fatores que caracterizam a exploração do espaço como hospedagem, atividade comercial proibida por muitas convenções do condomínio25. Perante esse cenário, é esperado que muitos imóveis sobre os quais não se intende exercer em tempo integral as faculdades do direito da propriedade passem a adotar o formato de joint ownership proposto pela tendência que se revela a multipropriedade, que faz, diante do exposto, seguramente jus a regulamentação própria no que tange às transcendências de sua classificação.

1 The History Of Vacation OwnershipCanadian Vacation Ownership Association’s website http://www.canadianvoa.org/the_history_of_vacation_ownership.shtml

2 Timeshare – RCI’s website https://www.wyndhamhomeexchange.com/pre-rci-it_IT/learn-about-timeshare/why- timeshare.page

3 Loyola Consumer Law Review Volume 18 | Issue 4 Article 4 2006 Timeshare Ownership: Regulation and Common Sense David A. Bowen (pgs 461 a 467)

4 La”propriété temporaire”, essai d’analyse des droits de jouissance à temps partagé (pg 4). Sylvie Pieraccini. Droit. Université du Sud Toulon Var, 2008.

5 Timeshare Sales Law, Rules and Regulations (1983) Code of Alabama Title 34 Professions and Businesses Chapter 27 Article 3 Vacation Time-Sharing Plans – Section 34-27-50. Definitions (8). https://codes.findlaw.com/al/title-34-professions-and-businesses/al-code-sect-34-27-50.html

6 La”propriété temporaire”, essai d’analyse des droits de jouissance à temps partagé. (pg 68) Sylvie Pieraccini. Droit. Université du Sud Toulon Var, 2008. Disponível em https://tel.archives-ouvertes.fr/tel- 00365379/document

7 Índex do UK Timeshare Act of 1992, disponível em http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1992/35/contents/enacted

8 Íntegra do Decreto-Lei Português 275 de 1993 em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=648&tabela=leis&so_miolo=

9 PROPERTY LAW AND PROCEDURE IN THE EUROPEAN UNION General Report Final Version (pg 16) – European University Institute (EUI) Florence/European Private Law Forum Deutsches Notarinstitut (DNotI) Würzburg Real – scientific co-ordinators: Dr. habil. Christoph U. Schmid, Ph.D. European Private Law Forum European University Institute, Florence; Christian Hertel, LL.M. Director DNotI (German Notary Institute), Würzburg; with contributions by Dr. Hartmut Wicke, LL.M., DNotI, Würzburg – 31.5.2005.

10 Diretiva Europeia 94 de 1994 em Língua Portuguesa em https://eur-lex.europa.eu/legal- content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A31994L0047

11 Diretiva Europeia 122 de 2008 https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A32008L0122

12 Texto da Lei Espanhola disponível em https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1998-28992

13Decreto Legislativo 427 de 1998 http://www.parlamento.it/parlam/leggi/deleghe/98427dl.htm

14 Lei Brasileira 13.777/2017 em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13777.htm

15 Final Report Evaluation Study on the Application of the Timeshare Directive 2008/122/EC. EUROPEAN COMMISSION Directorate General for Justice and Consumers. March 2015.

16 Loyola Consumer Law Review Volume 18 | Issue 4 Article 4 2006 Timeshare Ownership: Regulation and Common Sense David A. Bowen (pgs 461 a 467)

17 MACHADO, Hébia Luiza. Função socioambiental: solução para o conflito de interesses entre o direito à propriedade privada e o direito ao meio ambiente ecologicamente preservado. MPMG Jurídico, 2008

18 A CONTROVÉRSIA DO DIREITO REAL DA MULTIPROPRIEDADE IMOBILIÁRIA NO DIREITO PRIVADO (2017). Monografia de SANDRA FERREIRA DE CARVALHO PERES – Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

19 DIREITO DAS COISAS. Penteado, Luciano de CamargoSão Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, (pgs 304 e 305)

20 REsp 1546165/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/04/2016, DJe 06/09/2016

21 Primeiras linhas de direito processual civil. SANTOS, Moacyr Amaral. (pg 348)

22Website do escritório de advocacia “Brocardi”, citando Cass. 80/1300 https://www.brocardi.it/codice-civile/libro-terzo/titolo-viii/capo-ii/sezione-iii/art1158.html

23 “Multiproprietà: tra realità e relatività” (pg 72). SCUOLA DOTTORALE INTERNAZIONALE “TULLIO ASCARELLI” Diritto – Economia – Storia SEZIONE “Diritto Privato per l‟Europa” Area Diritto Civile XXVI Ciclo – Tutor Ch.mo Prof. S. Mazzamuto; Coordinatore Ch.mo Prof. G. Grisi ; Dottorando CLAUDIO BRUNO, Anno Accademico 2014/2015.

24 TJ-RS – Agravo de Instrumento AI 70079530549, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS. Relator: Dilso Domingo Pereira. Julgado em 13/03/2019.

25 STJ pode proibir aluguel de apartamentos via aplicativos. Matéria escrita por Yuri Soares para a revista AEC Web em 23/10/2019. Disponível em https://www.aecweb.com.br/revista/noticias/stj-pode-proibir- aluguel-de-apartamentos-via-aplicativos/19353

 

Fonte: Jus