Multipropriedade imobiliária e a lei 13.777/18

Anderson Schreiber. Professor Titular da UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro e Advogado.
Em 21 de dezembro de 2018, foi publicada a Lei 13.777, que incorporou, definitivamente, a multipropriedade imobiliária ao direito civil brasileiro. Conhecido e aplicado há tempos em experiências jurídicas estrangeiras (a exemplo do direito português que regulou a matéria sob a forma de um assim chamado direito real de habitação periódica), o instituto foi, entre nós, objeto do detalhado estudo de Gustavo Tepedino publicado em 1993 sob o título Multipropriedade Imobiliária, ali definida como a “relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa com exclusividade e de maneira perpétua” (São Paulo: Saraiva, 1993, p. 1).
 Também conhecida pela expressão inglesa time sharing, a multipropriedade imobiliária é uma forma de co-propriedade que amplia o potencial de uso de bens imóveis, especialmente em áreas de veraneio e outros recantos de repouso e férias. Mesmo já tendo sido reconhecida pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça como direito real em julgado que representou grande avanço nesta temática (STJ, REsp 1.546.165, rel. p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha, j. 24.6.2016), havia ainda grande insegurança quanto à natureza jurídica da multipropriedade imobiliária, o que, na prática, implicava severas dificuldades para realização dos registros e averbações pertinentes em cartórios do Registro de Imóveis (Frederico Henrique Viegas de Lima, Aspectos teóricos da multipropriedade no direito brasileiro, in Revista dos Tribunais 658/40). Com isso, empreendimentos baseados na multipropriedade imobiliária deixavam de ser realizados no Brasil ou eram realizados com base em mecanismos de natureza contratual ou societária que não garantiam a necessária segurança aos interessados.
 A lei recém-aprovada procurou superar esse cenário de incertezas, inserindo o novo Capítulo VII-A no Título III do Livro III da Parte Especial do Código Civil e alterando dois artigos da Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos). O novo artigo 1.358-C do Código Civil define a multipropriedade imobiliária como “o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.” Trata-se, portanto, na dicção da lei, de uma forma de condomínio aplicável apenas aos imóveis em que há uma divisão temporal no aproveitamento exclusivo da titularidade do bem, sendo certo que cada fração de tempo de utilização do imóvel deve ser indivisível e de, no mínimo, 7 (sete) dias “seguidos ou intercalados” (art. 1.358-E). A fração de tempo poderá ser: (a) fixa e determinada, correspondente ao mesmo período de cada ano (ex. primeira semana de fevereiro, dias 10 a 16 de abril etc.); (b) flutuante, isto é, variável de tempos em tempos, respeitada a objetividade e a transparência do procedimento de escolha e o tratamento isonômico entre os diversos multiproprietários; ou (c) mista, isto é, combinando características do sistema fixo e do sistema flutuante.
 Essa nova espécie de condomínio pode ser instituída, nos termos dos novos artigos 1.358-F a 1.358-H do Código Civil, por ato inter vivos ou por testamento, devendo ser registrado na matrícula do imóvel o período correspondente à fração de tempo. O ato de instituição deverá regulamentar os poderes e deveres dos multiproprietários; o número máximo de pessoas que podem ocupar simultaneamente o imóvel; as regras de acesso do administrador condominial ao imóvel; a criação de fundo de reserva para reposição e manutenção do imóvel; o regime aplicável em caso de perda ou destruição; bem como regular as multas aplicáveis aos multiproprietários em caso de descumprimento de seus deveres (art. 1.358-G). O instrumento de instituição poderá, ainda, prever uma fração de tempo destinada à realização de reparos indispensáveis ao normal exercício do direito de multipropriedade, atribuindo tal fração ao instituidor da multipropriedade ou, de forma fracionada, a cada um dos multiproprietários (art. 1.358-N).
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 A Lei 13.777 ocupou-se também dos direitos e obrigações dos multiproprietários, garantindo a cada um dos condôminos em multipropriedade o direito de usar e gozar do imóvel, incluindo-se aí sua cessão ou locação no período de tempo correspondente à sua própria fração de tempo. Assegurou, ainda, a cada condômino o direito de votar e de participar das assembleias gerais do condomínio em multipropriedade, sendo o voto proporcional à quota de fração de tempo de cada condômino, que somente poderá votar se estiver quite com suas obrigações (art. 1.358-I). Ainda em relação à possibilidade de votação em assembleia geral, a lei atribui tal prerrogativa aos promitentes compradores ou cessionários de fração de tempo (art. 1.358-K).
 O multiproprietário pode, ainda, alienar e onerar sua fração de tempo de forma livre, devendo, contudo, informar tal fato ao administrador do condomínio em multipropriedade. A alienação da fração de tempo, destaque-se, não depende da anuência dos demais co-proprietários; tampouco se garante aos demais condôminos o direito de preferência, salvo disposição expressa no instrumento de instituição da multipropriedade imobiliária (art. 1.358-L).
Em um dos vetos à lei aprovada pelo Congresso, o Presidente da República rechaçou os §§3º, 4º e 5º do artigo 1.358-J, segundo os quais cada um dos multiproprietários responderiam “na proporção de sua fração de tempo, pelo pagamento dos tributos, contribuições condominiais e outros encargos que incidam sobre o imóvel”, de modo que a cobrança somente seria realizada “mediante documentos específicos e individualizados para cada multiproprietário”, sem “solidariedade entre os diversos multiproprietários.” O fundamento da rejeição a tais dispositivos, segundo a Presidência da República, reside na contrariedade à solidariedade tributária fixada pelo artigo 124 do Código Tributário Nacional. O veto, se faz algum sentido para as obrigações tributárias, não impõe que haja solidariedade em relação às contribuições condominiais e demais encargos, na medida em que, nos termos do artigo 1.315 do Código Civil, “o condômino é obrigado, na proporção de sua parte, a concorrer com as despesas de conservação ou divisão da coisa, e a suportar os ônus a que estiver sujeita.” Trata-se de regra do condomínio geral, que se aplica também ao condomínio em multipropriedade, espécie que é daquele gênero.
 A administração da multipropriedade é atribuída pela Lei 13.777 a um administrador, definido no instrumento de instituição do condomínio ou por meio de eleição em assembleia geral dos condôminos. Ao administrador, além das tarefas elencadas no próprio instrumento de instituição da multipropriedade, caberá: (a) coordenar a utilização do imóvel; (b) definir, nos sistemas de fração temporal variável, o período de uso de cada um dos multiproprietários; (c) manter e conservar o imóvel; (d) trocar ou substituir equipamentos ou mobiliário; (e) elaborar orçamento anual; e (f) cobrar as quotas de cada um dos coproprietários, pagando as despesas comuns (art. 1.358-M).
A última seção do novo capítulo inserido pela Lei 13.777 no Código Civil destina-se ao regramento do condomínio edilício em regime de multipropriedade, seja ele parcial (alcançando apenas algumas das unidades autônomas) ou total, desde que previsto no documento de instituição ou por deliberação da maioria absoluta de seus condôminos (art. 1.358-O). Nessa hipótese, a convenção de condomínio edilício deve, entre outras disposições especificar: (a) quais as unidades sujeitas à multipropriedade; (b) quais as frações de tempo de cada unidade; (c) qual a forma de rateio das contribuições condominiais, as quais serão, na ausência de previsão em sentido diverso, proporcionais à fração de tempo; (d) quais são as despesas ordinárias de rateio obrigatório; e (e) quais são os órgãos de administração da propriedade (art. 1.358-P).
 O regimento interno do condomínio edilício em que houver multipropriedade deverá estabelecer regras relativas, dentre outros temas, à forma de utilização das áreas comuns pelos multiproprietários, bem como os direitos e deveres dos administradores com relação ao acesso ao imóvel, além das regras de convivência entre os multiproprietários e os ocupantes de unidades autônomas não sujeitas ao regime da multipropriedade, quando se tratar de empreendimentos mistos. A lei estabelece, ainda, que, nos condomínios edilícios em que todas as unidades se submeterem ao regime de multipropriedade, deverá haver um administrador profissional (art. 1.358-R), a quem caberá administrar também unidades autônomas dos condomínios em multipropriedade.
 A lei prevê, finalmente, que, no caso de inadimplemento das despesas ordinárias e extraordinárias por parte do proprietário em multipropriedade, caberá a adjudicação ao condomínio edilício da fração correspondente na forma da legislação processual civil (art. 1.358S). Já no caso de condomínios em multipropriedade voltados à locação de frações dos tempos por seus titulares (pool hoteleiro), o inadimplente poderá ser impedido de utilizar o imóvel até a quitação da dívida (art. 1.358-S, parágrafo único).
Questão tormentosa diz respeito à leitura do artigo 1.358-T introduzido pela nova lei no Código Civil. Tal dispositivo determina que “o multiproprietário somente poderá renunciar de forma translativa a seu direito de multipropriedade em favor do condomínio edilício.” É de se notar, em primeiro lugar, que o dispositivo elege o condomínio edilício como destinatário exclusivo da chamada renúncia translativa. A lei, nesse particular, atribui ao condomínio edilício (embora não se configure tecnicamente como pessoa jurídica, mas sim como ente despersonalizado) a possibilidade de ser titular de relações jurídicas de direito material, o que, conquanto não seja inédito em nossa ordem jurídica, não deixa de merecer atenção. Além disso, o termo renúncia translativa, comumente utilizado no âmbito do direito das sucessões, significa, tecnicamente, não uma renúncia propriamente dita, mas uma transferência de direito a outrem. Ora, se o condômino pode renunciar translativamente à multipropriedade em favor do condomínio, não parece haver razão legítima para que não possa fazê-lo em favor de outro condômino, especialmente diante do disposto no parágrafo único do artigo 1.358-C, segundo o qual nem mesmo a reunião de todas as frações de tempo em um mesmo proprietário leva à extinção da multipropriedade.
 Nesse cenário, parece mais coerente que o dispositivo tenha trazido uma vedação à renúncia abdicativa, que, como regra geral, é admitida nos condomínios (CC, art. 1.316), de modo a interpretar a renúncia abdicativa nesse âmbito como renúncia translativa direcionada necessariamente ao condomínio edilício. Trata-se, ao que tudo indica, de uma proteção à preservação da utilidade econômica privilegiada por meio do regime do condomínio em multipropriedade, impedindo-se que a fração de tempo da multipropriedade fique sem titular ou que venha a ser arrecadada pelo Município. O condomínio edilício mantém-se na propriedade da fração de tempo e poderá garantir a continuidade da utilização do bem imóvel, sem prejuízo aos demais coproprietários, justamente por ser responsável pela gestão do patrimônio comum e por se tratar, em certo sentido, de uma renúncia que afeta apenas parcialmente (no tempo) a propriedade do bem imóvel.
 Há outros pontos na Lei 13.777 que mereceriam tratamento mais claro ou específico, mas, de modo geral, pode se afirmar que, controvérsias à parte, a nova lei merece aplausos por ter, enfim, introduzido no direito brasileiro um regramento relativamente seguro da muiltipropriedade imobiliária no país, superando vácuo normativo que, há anos, impedia uma forma instigante de exploração da propriedade imobiliária, especialmente em um país com inegável vocação para o turismo e o lazer. Caberá agora à doutrina e à jurisprudência identificar as melhores interpretações para os dispositivos legais que regulam a matéria, sem nunca deixar de atentar à necessidade de concretização, também neste campo, da função social da propriedade e dos demais valores constitucionais.
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