Angústia – Lucien Freud
A obra de Freud Inibição, sintoma e angústia (1926) é o ponto de partida para nossas reflexões sobre a angústia. Mas, antes, algumas observações preliminares sobre o que alguns definem como a “razão psicanalítica”.
Primeiro, vamos contextualizar o pensamento freudiano, que surge da clínica, movido pelas inquietações e desejos de Freud em decifrar as causas do sofrimento psíquico humano. Antes mesmo da virada do século XIX para o XX, Freud já havia escrito “Estudos sobre a histeria” e outros artigos tentando compreender sintomas que desafiavam a medicina da época. É com A Interpretação dos Sonhos que Freud funda e sistematiza o inconsciente — descoberta que impactaria não apenas o tratamento das “doenças nervosas” (como se dizia então), mas toda a cultura.
Assim, o pensamento freudiano transborda da medicina e do âmbito da patologia para o campo da cultura ou da civilização, como ele próprio preferia dizer — e, com isso, para a reflexão sobre o sujeito imerso na sociedade.
Freud aprofunda, ao longo da vida, os conceitos fundamentais do campo psicanalítico. E, para nossa sorte, graças à sua ampla formação em mitologia, literatura, história das religiões, antropologia e estética, constrói um arcabouço teórico riquíssimo, tecido com a prática clínica e a reflexão conceitual, em que o homem ocupa o centro desse universo. Um homem cindido em suas instâncias inconscientes, movido por seus desejos e paixões, frequentemente interditados pela lei e pelos limites civilizatórios. O que antes era visto sob o olhar médico apenas como a “doença dos nervos” — separando os doentes dos normais —, agora se estende à humanidade como um todo: todos pagam com sofrimento psíquico o preço por viver em sociedade.
Mas como se deu esse extraordinário percurso de Freud e da psicanálise?
É, em parte, o objetivo desta série de artigos que pretendo trazer a você, leitor: um percurso que começa na prática clínica e, ao longo de quatro décadas, transborda e produz um efeito radicalmente transformador na cultura (ou civilização), ajudando a esclarecer quem somos — o homem do século XXI com suas conquistas, hábitos e adversidades.
Com essa breve introdução, um caminho se abre à minha frente. Agora que escrevo, percebo que o título da série — Psicanálise, Cultura e Sociedade — delimita a trilha de nossa jornada.
Traremos, ao longo dos textos, reflexões sobre o que chamei em um artigo de 1999 de “pensamento social de Freud”: o conjunto de suas obras que vai além da prática clínica, mas que, fundado em suas descobertas psicanalíticas, lança um olhar profundo e inquietante — parafraseando seu texto O Estranho (Das Unheimlich) — sobre o homem imerso em sua história e civilização.
Da vasta obra freudiana, que inclui cerca de vinte volumes e trinta mil cartas, selecionaremos apenas aquelas que constituem esse núcleo do pensamento social. Dentre elas, O mal-estar na civilização, O futuro de uma ilusão, Totem e tabu, Moisés e o monoteísmo, entre outras.
Para abordar esse pensamento de forma mais profunda, é imprescindível conhecer alguns conceitos fundamentais, originalmente voltados à clínica. Sem eles, seria como entrar numa floresta bela, mas vazia de vida — incompleta, por não termos a visão necessária para apreciá-la em toda sua plenitude.
O primeiro desses conceitos é o inconsciente — pedra angular da psicanálise. A ele seguem-se a sexualidade e suas pulsões, entre outros. Entretanto, como esta série não tem pretensão acadêmica, buscarei — se é que isso é possível — caminhar ao seu lado, leitor, entre os árduos e, muitas vezes, indecifráveis conceitos revelados na clínica. A ideia é munirmo-nos de um “embornal” simbólico, recheado de mantimentos e instrumentos, para adentrar a floresta densa do pensamento social de Freud.
Uma observação se faz necessária: essa caminhada não será linear. Mesmo que faça voltas e curvas, ela se estrutura mais como uma rede, tecida por fios que vêm de várias áreas do conhecimento que fui sorvendo ao longo da vida — literatura, filosofia e ciência política, além do meu próprio percurso analítico, um nome pomposo para a minha análise pessoal, iniciada aos trinta e três anos.
No próximo artigo, abordarei o tema da angústia, tendo como ponto de partida a obra aqui já citada — Inibição, sintoma e angústia. Nela, Freud nos oferece uma das chaves para entender a constituição do sujeito na sua relação dialética com o ato de existir e a angústia como motor dessa existência.
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BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obra original publicada em 1900).
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Obra original publicada em 1913).
FREUD, Sigmund. Inibição, Sintoma e Angústia. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obra original publicada em 1926).
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Obra original publicada em 1927).
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obra original publicada em 1930).
FREUD, Sigmund. Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. (Obra original publicada em 1932).
FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. (Obra original publicada em 1939).
FREUD, Sigmund. O Estranho (Das Unheimliche). In: ______. Obras completas – volume 17: Artigos sobre literatura, arte e cultura. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.







