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Como em Os Outros, condomínios gigantes crescem no Brasil e são palco de tensões

A série “Os Outros” bateu recorde de audiência nas últimas semanas e tornou-se a mais assistida da plataforma de streaming Globoplay. O seriado, estrelado por nomes carimbados da TV brasileira, como Adriana Esteves e Eduardo Sterblitch, é um drama sobre a tensão entre vizinhos com o plano de fundo da crise econômica, da corrupção e da violência no Brasil. E se passa em um cenário que também tem se tornado tipicamente brasileiro: um condomínio fechado gigantesco, com centenas de apartamentos espalhados em prédios com dezenas de andares. Essas construções são uma tendência no país e Belo Horizonte e região não ficam atrás.

“Sem dúvida, eles são uma tendência. Existem verdadeiros resorts, complexos de vários blocos em que a construtora tenta incorporar o máximo de serviços para evitar que os condôminos precisem sair para ir a clubes ou a outros lugares”, resume o vice-presidente da Câmara do Mercado Imobiliário e do Sindicato das Empresas do Mercado Imobiliário de Minas Gerais (CMI/Secovi-MG), Leonardo Mota. Ele também é fundador da Pacto Administradora, empresa de administração de condomínios que tem cerca de 50 clientes de megaempreendimentos em sua carteira em BH e região. “Alguns deles movimentam de R$ 300 mil a R$ 400 mil por mês, são verdadeiras cidades”.

Além dos condomínios gigantes já espalhados por bairros como Buritis, Belvedere e Caiçaras, hoje existem 12 empreendimentos desse tipo em construção em BH e Nova Lima, na região metropolitana. Juntos, eles somam uma área de 332 mil m² — mais do que o Mineirão e a esplanada inteira, sem contar a área de CA (relação entre a área construída computável e a área do terreno). Fora as outras cidades na região metropolitana. Em Contagem, por exemplo, a Econ Participações S.A investe R$ 1,3 bilhão em um complexo que inclui, além de um condomínio com 2.000 apartamentos, escola, supermercado e hotel.

“Em BH, há falta de espaço. Ainda se consegue construir condomínios com estruturas mais arrojadas, mas não tanto quanto em Nova Lima, Lagoa Santa e Vespasiano, por exemplo”, cita Leonardo Mota, do CMI/Secovi-MG. Na capital, alguns empreendimentos prosseguem. Próximo ao bairro Monte Azul, na região Norte de BH, a construtora Emccamp Residencial está entregando as primeiras chaves às 2.280 famílias que ocuparão os 12 condomínios do bairro planejado Parque Cerrado, projetado para atender aos requisitos do programa Minha Casa Minha Vida.

Tensões no paraíso: quando condomínios se tornam palco de brigas e ressentimento

Na série “Os Outros”, os personagens simbolizam problemas entranhados no Brasil, como a precarização do mercado de trabalho, a luta de classes e as milícias que atuam em regiões do Rio de Janeiro. Uma briga entre dois adolescentes em uma das várias quadras do condomínio é o estopim para uma história que escala para atos cada vez mais violentos. Não é o que ocorre na maioria dos condomínios, contudo o ambiente também é de tensão em alguns deles.

“O ponto-chave dessa tensão, ao meu ver, é que as pessoas moram em um coletivo, mas não abandonam o individualismo. Elas não trazem consigo essa bagagem do dividir, do compartilhar, de entender o universo em que estão. Muitas vezes, não têm respeito ou senso de coletividade”, descreve a síndica de um condomínio com quase 250 apartamentos no bairro Vila da Serra, em Nova Lima, onde os moradores pagam entre R$ 1.800 e R$ 2.700 de taxa condominial.

“Durante uma festa, tentamos que a pessoa baixasse o som e só conseguimos quando a polícia chegou. Mas a pessoa estava alcoolizada e o trato foi ainda mais difícil, então ela falou que podíamos mandar a multa, que estava OK, faria sua festa. Ela diminuiu o volume do som, mas continuou incomodando com conversas altas. Em outra situação, um morador sempre fazia barulho após as 22h e não estava nem aí. Quando o multei, pessoas próximas a ele se rebelaram e ele entrou na Justiça”, continua. Uma das torres do complexo tem apartamentos maiores e uma área de lazer própria, por isso é murada e separada das demais, quase “um condomínio fechado dentro do condomínio”, brinca a síndica.

Não é incomum, diz ela, que vizinhos guardem ressentimento uns dos outros durante anos e evitem até entrar no elevador com os “inimigos”. “O síndico precisa ter cuidado, porque, muitas vezes, não é um problema do condomínio com o morador, mas uma rixa entre vizinhos”.

As brigas em vizinhanças não são novidades. Mas, assim como a tensão no cenário global, elas têm escalado, avalia a coordenadora do curso de especialização em psicologia jurídica da PUC-Rio, Lidia Levy. “Cresce essa sensação de que o outro pode me invadir a qualquer momento e ele vira meu adversário, meu inimigo. É quase como se ninguém suportasse mais se sentir prejudicado e dificilmente conseguisse se colocar no lugar do outro”, diz. “Coisas pequenas acabam gerando a maior tensão. Um barulho, um carro que não foi estacionado certo. E, quando estamos infelizes ou frustrados com a nossa vida, uma coisa pequena, uma risadinha fora de hora, provoca mal-estar”.

Há episódios em que as brigas chegam a um patamar extremo. De 2021 a maio de 2023, foram registrados 665 casos de lesão corporal e 759 de outras agressões entre vizinhos em condomínios de variados portes em Minas Gerais, segundo a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp MG).

Condomínios têm arquitetura que protege, mas pode aprisionar, avalia arquiteta

Com a perspectiva de vender mais unidades, as construtoras conseguem investir em áreas de lazer mais robustas. A promessa dos grandes condomínios é uma vida de moradia, segurança e lazer no mesmo espaço. Mas é uma comodidade que cobra seu preço para a vida urbana, na perspectiva da arquiteta e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Jupira Mendonça. “Do ponto de vista urbanístico também, mas principalmente sociológico, penso que eles têm um caráter negativo. Isso porque criam grandes áreas sem vida, em que toda a vida está dentro do condomínio, com cercas e muros. Eles geram áreas ermas, sem as chamadas fachadas ativas, sem comércio, serviços ou áreas livres que criem movimento. O próprio mercado criou essa demanda”, avalia.

O vice-presidente da área imobiliária do Sindicato da Indústria da Construção Civil no Estado de Minas Gerais (Sinduscon-MG), Luiz Gazzi, também pondera que o crescimento dos condomínios pode minar parte da vida social nas ruas. “Quanto mais lazer se tem nos condomínios, mais você tira as pessoas da rua, da praça, da convivência que é realmente pública”. Uma solução, diz ele, são os condomínios que também possuem uma área aberta ao público, como supermercados, escolas e praças — e que, assim, não criam uma divisão tão rígida entre moradores e “os outros”.

 

Fonte: O tempo

 

Luiz Davi

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